© Getty Images Pangolim traficado em Kuala Lumpur: animal é suspeito de ser o hospedeiro intermediário do coronavírus
Em algum lugar da China, um morcego voa deixando para trás um rastro de coronavírus em seus excrementos, que caem em meio à vegetação de uma floresta.
Um animal silvestre, possivelmente um pangolim à procura de insetos para comer, faz contato com os excrementos... e com o vírus.
Eventualmente, um deles é capturado, entra em contato com seres humanos e, de alguma forma, acaba infectando alguém.
Este indivíduo, por sua vez, transmite o vírus a seus colegas no mercado, onde outros animais silvestres são vendidos.
E assim pode ter nascido o surto global do novo coronavírus (Covid-19) que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), tem potencial de "pandemia".
Os cientistas estão tentando comprovar este cenário e tentam encontrar animais selvagens com o vírus.
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Desvendar a sequência de eventos é um "trabalho de detetive", diz à BBC o professor Andrew Cunningham, da Zoological Society of London, no Reino Unido.
Uma grande variedade de animais pode ter servido como "hospedeiro" do vírus, especialmente o morcego, conhecido por ser portador de um número considerável de coronavírus diferentes.
O vírus já infectou mais de 80 mil pessoas em quase 40 países, provocando 2.762 mortes ao redor do mundo (mais de 95% na China). No Brasil, um paciente recebeu um diagnóstico preliminar da doença.
Mas o que sabemos sobre a "transmissão indireta", como é chamada no mundo científico a transmissão do vírus de um ser vivo para outro?
Quando os cientistas conseguiram decifrar o código genético do novo coronavírus, após coletar uma amostra de um paciente infectado, os morcegos se tornaram os principais suspeitos.
Estes mamíferos vivem em enormes colônias, voam longas distâncias e estão presentes em quase todos os continentes.
E o mais curioso: eles não costumam ficar muito doentes, mas têm a capacidade de espalhar patógenos a uma grande distância e de forma bem ampla.
Segundo a professora Kate Jones, da University College London (UCL), no Reino Unido, há evidências de que os morcegos se adaptaram à alta demanda de energia de seus voos e aprimoraram sua capacidade de reparar danos em seu DNA.
"Isso poderia permitir a eles lidar com uma carga maior de vírus antes de ficarem doentes, mas essa é hoje apenas uma hipótese", observa Jones.
Não há dúvida de que o comportamento dos morcegos ajudou a espalhar o vírus.
"Se considerarmos a forma como vivem, é natural que tenham uma grande variedade de vírus. E como são mamíferos, existe a possibilidade de que alguns deles possam infectar humanos diretamente ou por meio de uma espécie de hospedeiro intermediário", acrescenta o professor Jonathan Ball, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
Agora, a segunda parte do quebra-cabeça é estabelecer a identidade do animal misterioso que incubou o vírus em seu corpo e acabou possivelmente em um mercado na cidade de Wuhan, na China, epicentro do surto.
O principal suspeito é o pangolim.
Este mamífero, que se alimenta de formigas, talvez seja a espécie mais traficada em todo o mundo — e é, por isso, ameaçada de extinção.
Há uma grande demanda por pele de pangolim, especialmente para uso medicinal na China, embora sua carne também seja requisitada em outros países.
Coronavírus foram detectados em pangolins e, segundo alguns cientistas, um tipo muito próximo ao coronavírus que está causando esse surto.
Mas será que o vírus do morcego e o vírus do pangolim podem ter se modificado geneticamente antes de se espalhar para os seres humanos? É aqui que os especialistas são cautelosos.
Como ainda não foi finalizado um estudo completo sobre o pangolim, é impossível verificar cientificamente as informações.
O professor Cunningham destaca que a procedência e o número de pangolins examinados pelos pesquisadores é um fato importante.
"Há muitas perguntas sobre esta análise: os animais foram examinados diretamente na natureza (o que é mais importante para o resultado) ou eram simplesmente pangolins que já estavam no mercado de Wuhan (neste caso, as conclusões sobre se são portadores do vírus não seriam suficientemente robustas)?", diz.
Os pangolins e outros animais silvestres, incluindo uma variedade de morcegos, são amplamente vendidos nos mercados chineses, o que facilita a transmissão do vírus.
"Estes mercados criam as condições ideais para que os vírus sofram mutações e saltem de uma espécie para outra, incluindo seres humanos", acrescenta Cunningham.
O mercado
O mercado de Wuhan, que foi fechado depois que o surto veio à tona, tinha uma seção de animais silvestres, onde eram vendidos animais vivos ou abatidos, incluindo partes de camelos, coalas e vários tipos de aves.
O jornal britânico The Guardian destacou que algumas barracas vendiam filhotes de lobos, cigarras, escorpiões, ratos, esquilos, raposas, civetas, porcos-espinhos, salamandras, tartarugas e crocodilos.
Até onde sabemos, morcegos e pangolins não estavam nesta lista, mas as autoridades chinesas têm informações específicas sobre que animais foram vendidos neste mercado.
"Se ocorreu mutação no vírus, precisamos saber se isso acontecerá novamente. É fundamental do ponto de vista de saúde pública. Precisamos saber especificamente o tipo de animal e os riscos de que possa haver outra mutação, outra mudança no vírus", diz Cunningham.
Muitos vírus que se tornaram conhecidos devido ao seu alcance nos últimos anos são provenientes de animais.
Esta é a história do ebola, do HIV, da Sars e agora do coronavírus.
Jones acredita que isso se deve à nossa capacidade crescente de detectá-los, à conectividade cada vez mais onipresente e à invasão de habitats selvagens, "mudando paisagens e entrando em contato com novos vírus que a população humana nunca viu antes".
"Se entendermos os fatores de risco, podemos tomar medidas para impedir (a propagação) sem afetar negativamente os animais selvagens", explica Cunningham.
Conservacionistas alertam que, embora se acredite que os morcegos sejam portadores de muitos vírus, eles também são essenciais para o funcionamento dos ecossistemas.
"Os morcegos insetívoros comem grandes quantidades de insetos, como mosquitos e pragas agrícolas, enquanto os morcegos que se alimentam de frutas polinizam árvores e espalham suas sementes", observa.
"É imperativo que estas espécies não sejam abatidas por meio de medidas equivocadas de 'controle de doenças'", acrescenta.
Depois que a síndrome respiratória aguda grave (Sars) eclodiu, em 2002, causada por um coronavírus muito semelhante ao do surto atual, houve uma proibição temporária dos mercados de animais silvestres. Mas os mercados reapareceram rapidamente na China, Vietnã e outras partes do sudeste asiático.
A China suspendeu mais uma vez a compra e venda de produtos oriundos de animais selvagens, como alimentos, peles e medicamentos tradicionais. Acredita-se que a medida possa ser permanente.
Embora seja possível que nunca saibamos exatamente como ou onde o novo coronavírus foi transmitido para os seres humanos, a professora Diana Bell, da University of East Anglia, no Reino Unido, diz que podemos evitar outra "tempestade perfeita".
"Estamos reunindo animais de diferentes países, habitats distintos, estilos de vida diversos, em matéria de animais aquáticos, animais arbóreos, etc., e estamos misturamos eles em uma espécie de caldeirão, e temos que parar de fazer isso", conclui.
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